terça-feira, 15 de setembro de 2020

Frei Tito, 75 anos ( Frei Betto 09/09/2020)


Quando secar o rio de minha infância,
Secará toda dor.
Tito de Alencar Lima
A14 de setembro Frei Tito completaria 75 anos de idade. Ele faleceu em agosto de 1974, em L'Arbresle, no Sul da França, induzido ao suicídio em decorrência das torturas sofridas nos cárceres da ditadura militar.
Na dor de Tito gravou-se o que de mais hediondo produziu a ditadura militar brasileira e, nele, tornado símbolo das vítimas de torturas elencadas no livro Brasil, Nunca Mais (Vozes), reflete-se a indignação de quantos acreditam na política como mediação de utopias libertárias. Preso em novembro de 1969, em São Paulo, acusado de oferecer infraestrutura a Carlos Marighella, Tito foi submetido a palmatória e choques elétricos, no DEOPS, em companhia de seus confrades.
Em fevereiro do ano seguinte, quando já se encontrava em mãos da Justiça Militar, foi retirado do Presídio Tiradentes e levado para a Operação Bandeirantes, mais tarde conhecida como DOI-CODI, à rua Tutóia, na capital paulista. Durante três dias, bateram sua cabeça na parede, queimaram sua pele com brasa de cigarros e deram-lhe choques por todo o corpo, em especial na boca, "para receber a hóstia", gritavam os algozes.    
Fernando Gabeira, preso a lado, tudo acompanhou. Queriam que Tito denunciasse quem o ajudou a conseguir o sítio de Ibiúna para o congresso da UNE, em 1968, e assinasse depoimento atestando que frades dominicanos participaram de assalto a bancos. No limite de sua resistência, Tito cortou, com a gilete que lhe emprestaram para fazer a barba, a artéria interna do cotovelo esquerdo. Foi socorrido a tempo no hospital militar, no Cambuci.  
As incessantes torturas não abriram a boca do frade dominicano de 28 anos, mas lhe cindiram a alma. Cumpriu-se a profecia do capitão Albernaz, da Oban: "Se não falar, será quebrado por dentro, pois sabemos fazer as coisas sem deixar marcas visíveis. Se sobreviver, jamais esquecerá o preço de seu silêncio".
Em dezembro de 1970, incluído na lista de presos políticos trocados pelo embaixador suíço, Giovanni Bucher, sequestrado pela Vanguarda Popular Revolucionária, Tito foi banido do Brasil pelo governo Médici.


De Santiago do Chile rumou para Paris, sem jamais recuperar sua harmonia interior. Nas ruas da capital francesa ele "via" o espectro de seus torturadores. Transferido para L'Arbresle, próximo a Lyon, em seu estreito quarto no convento construído por Le Corbusier, Tito estremecia aos gritos do pai espancado no DOPS, gemia aos berros da mãe dependurada no pau-de-arara, arrepiava-se de pavor aos espasmos de seus irmãos eletrocutados, contorcia-se em calafrios sob o fantasma do delegado Fleury. Sua mente naufragava em delírios.
No dia 10 de agosto de 1974, um estranho silêncio pairou sob o céu azul do verão francês, envolvendo folhas, ventos, flores e pássaros. Nada se movia. Entre o céu e a terra, sob a copa de um álamo, balançava o corpo de Frei Tito, dependurado numa corda. Do outro lado da vida ele encontrara a unidade perdida. Deixou registrado em seus papéis que "é melhor morrer do que perder a vida".
O testemunho de Frei Tito, descrito em meu livro Batismo de sangue (Rocco), é um grito parado no ar nesses tempos obscuros de um Brasil governado por um genocida indiferente à morte de mais de 100 mil vítimas da Covid-19. Sob esse governo militarizado, mais interessado em fazer a apologia das armas que salvar vidas, relembrar Frei Tito é alertar a consciência brasileira de que é urgente condenar ao passado, com se fez com a ditadura, esse governo comandado por uma família de milicianos corruptos. Temos, sim, uma arma democrática nas mãos para honrar a memória de Frei Tito: votar, nas eleições municipais deste ano, em candidatos progressistas a vereador e prefeito, comprovadamente comprometidos com os direitos humanos e as causas populares.

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