| | | Uma história de amor candente e fatal: assim pode ser descrito Fire of Love, título original do documentário sobre um casal de vulcanólogos franceses dirigido pela norte-americana Sara Dosa. O filme acompanha a trajetória de Katia e Maurice Krafft, que viveram até o limite uma vida dedicada a investigar as entranhas da Terra e a forma como algo dela chega à superfície na forma de lava. Não é spoiler dizer que os protagonistas morrem em plena ação: o filme começa pela morte do casal enquanto monitorava a erupção do Monte Unzen, no Japão, em junho de 1991. Antes disso, porém, os vulcanólogos visitaram dezenas de vulcões em plena atividade, às vezes chegando a poucos metros da erupção. Como estavam sempre equipados para fazer medições e registrar suas presenças em áudio e vídeo, deixaram centenas de horas de filmagens de extrema beleza plástica – imagens que Dosa pôde utilizar para contar a trajetória do casal. Quando estudavam uma erupção de perto, os Krafft iam a campo protegidos por equipamentos de segurança que incluíam um capacete metálico com uma abertura apenas para os olhos que os cobria até além dos ombros. As cenas dos cientistas vestidos com suas armaduras desajeitadas diante da lava incandescente dão ao filme um ar feérico, acentuado pela voz e cadência delicada da cineasta, atriz e escritora Miranda July, que foi convidada para narrar o filme. O resultado é um documentário fascinante que se interessa igualmente pelos vínculos que os Krafft criaram entre si e com seu objeto de estudo, um filme que ensina tanto sobre a tipologia dos vulcões quanto sobre as paixões que movem os humanos. Quem gostar do documentário provavelmente se interessará também por Visita ao Inferno, documentário sobre vulcões do cineasta alemão Werner Herzog, lançado em 2016 e disponível na Netflix. | | "Escrever é muito perigoso." A frase que dá título à coletânea de ensaios e conferências da escritora polonesa Olga Tokarczuk, vencedora do Prêmio Nobel de Literatura de 2018, resume bem o que vamos encontrar na leitura. Na contramão do lugar-comum de que a escrita é uma atividade libertadora, a dedicação à literatura é retratada nesses ensaios como uma forma de servidão: "Alguma vez já pensaram que a fonte da criação literária pode ser o fato de que algo quer ser escrito?", a autora questiona. Para Tokarczuk, a escrita ficcional é uma atividade demoníaca. A ideia de que um daimonion dita histórias ao pé do ouvido de quem escreve é bastante conhecida. E Tokarczuk não se acanha ao recorrer a esse mito – que está na base das noções antiga e moderna de gênio – para intervir no debate sobre os rumos da ficção atual. Em "O narrador sensível", seu belo discurso do Nobel (e também o texto que encerra a antologia), Tokarczuk sugere que a recente proliferação de obras autobiográficas, que ela ironicamente chama de "narrações do tipo 'vou contar a minha história para você'", tem como efeito colateral o achatamento da imaginação. "Isso que você escreveu é verdade?", os leitores não se cansam de perguntar, fazendo coro às vozes que "lutam por atenção" e terminam "por abafar umas às outras" com o seu samba de uma nota só: eu, eu, eu. Quando deixam de alimentar seus demônios criativos e consideram que narrar as próprias vidas é intrinsecamente interessante, os escritores se esquecem da árdua tarefa de esquecer a si mesmos: "Entrar profundamente na vida de outro ser, entender suas razões, partilhar seus sentimentos, viver sua história." Para Tokarczuk, o nutriente mais valioso da ficção é a diferença. E esse "outro significativo" não deve se restringir ao humano. "Máscaras dos animais", um dos ensaios mais provocativos do livro, parte dessa ideia. A primeira frase é impactante: "Para mim, é mais fácil suportar o sofrimento de um ser humano que o sofrimento de um animal." Segundo a autora, isso acontece porque dispomos de ferramentas mentais como a cultura e a religião, capazes de atenuar nossa dor, enquanto "o sofrimento do animal é absoluto, total". Como ela sabe disso? Como chega a essa conclusão? Especulando, fabulando. Em outras palavras, interrogando seus próprios demônios. | | Tudo É Grande Demais para a Pobre Medida da Nossa Pele, livro do escritor pernambucano Bernardo Brayner, é uma ficção em forma de almanaque que se inspira em obras como O Livro dos Seres Imaginários de Jorge Luis Borges, A Literatura Nazista na América, de Roberto Bolaño, e, mais recentemente, Pequena Enciclopédia de Seres Comuns, de Maria Esther Maciel. A diferença é que, no lugar de curtas biografias ou do inventário de plantas, animais exóticos e seres míticos, estamos diante de uma inventiva biblioteca de obras jamais escritas. Para trazer esses livros à realidade concreta, ao mundo que conhecemos, o autor inventa o personagem Julian Cardoni, um crítico colombiano de quem Brayner seria uma espécie de amanuense. Além de compilar "clássicos invisíveis" da história da literatura, Cardoni assina o "prefácio curtíssimo" e o posfácio nada esclarecedor dessa antologia de resenhas breves. Tudo É Grande Demais para a Pobre Medida da Nossa Pele também conta com fotografias, entrevistas, trechos lapidares e capas das obras: um sistema literário em miniatura. Alguns dos livros imaginados pelo autor têm premissas assombrosas: um Deus amputado que cria o mundo à sua imagem e semelhança, um cocheiro conduzindo uma "carruagem puxada por um bezerro, um porco, um cachorro e um homem nu". Outros nos fazem rir às gargalhadas, como o romance distópico em que escritores mortos voltam a circular como zumbis, naturalmente tendo outros escritores como alvos: Nabokov "teria destroçado a dentadas o pescoço do morto-vivo que outrora fora Dostoiévski", enquanto Poe "tremia como se sofresse de febre". Dos grandes nomes do cânone ocidental, só Kafka prefere não se levantar da tumba, se limitando a piscar os olhos timidamente. Os livros que nascem da fértil imaginação de Brayner são muito diferentes entre si, tanto no tema como no estilo. Mas há um traço que os une. Para os escritores que povoam esse universo feito só de palavras, a literatura é o que existe de mais importante, a única realidade possível – e por esse motivo ela é apenas uma outra palavra para denominar o que nos habituamos a chamar de "vida". | | | | Confira o portfólio da pintora ucraniana Maria Oksentiiva Prymachenko, publicado na piauí em abril de 2022. Prymachenko foi a maior representante da arte naïf em seu país e sempre buscou, através de cores vivas em seus quadros, manifestar seu pacifismo. "Maria Prymachenko nunca foi indiferente aos acontecimentos do seu tempo. Ela sempre fez questão de expor seu antagonismo visceral à guerra, qualquer guerra, fazendo uso, apesar da crueza do tema, de cores vivas, vivíssimas", escreve Anastasiia Prymachenko, bisneta da pintora, no texto de apresentação do portfólio. Pintura de Maria Oksentiiva Prymachenko_1988 | | | | Eu, Você, Um Fantasma, texto publicado na edição de abril da piauí, é um conjunto de trechos do livro Formas Feitas no Escuro (Fósforo), da escritora Leda Cartum. Os trechos não compõem uma narrativa linear, transitando entre a prosa e a poesia. Um náufrago chega a uma ilha desconhecida e se abriga no interior de uma caverna; um personagem indefinido ("você") levanta no meio da noite e assusta os outros habitantes da casa, que saem à rua, como "pombas enlutadas", a procurá-lo. Cheio de imagens sugestivas, que misturam o tédio doméstico a paisagens exteriores ("Da curva da estrada do quarto veio um vulto diferente de uma terra distante"), esses minicontos – ou poemas em prosa - têm em comum a lógica onírica, o mistério de sonhos que parecemos sempre prestes a decifrar, como o homem que "tentava se lembrar de uma palavra que tinha esquecido", vasculhando os cantos mais escuros de sua memória. Ilustração de Bárbara Quintino | | | | | |
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