Constituição Federal já obrigava estados a transferirem a propriedade de terras públicas não destinadas ou que não faz parte do patrimônio privado.
As comunidades quilombolas e organizações dialogaram com os parlamentares para elaboração da redação da proposta legislativa. Foto: Rafael Bertelli/ Mandato Deputado Goura
O Projeto de Lei 770/2023, protocolado nesta segunda-feira (18) na Assembleia Legislativa do Paraná pelo deputado estadual Goura (PDT), determina que o estado transfira terras devolutas estaduais para comunidades quilombolas que tem seus territórios tradicionais sobrepostos total ou em parte das terras públicas. A proposta legislativa contém também a assinatura das deputadas Ana Júlia e Luciana Rafagnin, e deputados Arilson Chiorato, Dr. Antenor e Renato Freitas, todos do PT. Num primeiro passo, a medida deve ser apreciada pela Comissão de Constituição e Justiça da Alep.
O Projeto de Lei determina que o Estado do Paraná emita títulos de propriedade definitiva das terras públicas estaduais ocupadas por remanescentes das comunidades quilombolas. A medida vem para atender uma lacuna no Estado de não cumprimento da previsão legal determinada na Constituição Federal de 1988. Isso porque o artigo 68 da Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) já determinava que todos os entes federados – União, estados e municípios – devem destinar terras devolutas para fins de regularização fundiária de comunidades quilombolas.
O estado do Paraná já havia conceituado, por meio da Lei 7055/1978, sobre o que se configura como terra devoluta estadual. A normativa reconhece que terras do estado são aquelas que não foram dadas, vendidas, estabelecidas em contrato ou obtidas por meio judicial e que não cabem mais recurso. A norma ainda conceitua como devolutas terras antigas, do período ainda de configuração do território brasileiro em sesmarias, repassadas ao estado em regimes antigos de propriedade e que não tiveram destinação de uso. Com isso, comunidades quilombolas que já tinham identificado terras devolutas dentro do seu perímetro – a partir da elaboração do Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID), uma das etapas do processo de titulação quilombola - poderiam ter seus títulos de propriedade emitidos.
Mesmo com conceituação destas terras na década de 70 e determinação constitucional nos anos 80, o estado do Paraná até o momento não destinou essas áreas para fins de regularização fundiária quilombola. É nesse sentido que o Projeto de Lei se insere.
"Consideramos isso [a não destinação de terras devolutas estaduais para regularização fundiária] uma omissão do próprio estado brasileiro. Desde a época da libertação dos escravizados a gente luta pelo território quilombola, para fazer plantio e manter nosso modo de vida. Desde 2006 a gente vem apontando que há terras devolutas no Paraná e até hoje estamos reivindicando", destaca a integrante da Federação Estadual das Comunidades Quilombolas do Paraná (Fecoqui) e da comunidade quilombola de João Surá (PR), Carla Galvão.
"Esse Projeto de Lei é muito importante para cumprir o art. 68 do ADCT em nível estadual, pois apesar da Constituição Federal prever a obrigação do Estado de emitir títulos de propriedade nos territórios quilombolas há quase 35 anos, nenhuma ação sobre terras devolutas no Paraná havia sido tomada, mesmo quando encaminhados processos administrativos do INCRA para o Governo.
O Projeto de Lei ainda aponta que o título de áreas de terras devolutas dentro de comunidades quilombolas será de natureza coletiva e não pode ser vendido, transferido ou mesmo perdido em caso de penhora por dívidas, como determina o Decreto Federal 4887/2003, que regulamenta o procedimento de titulação quilombola. Essas previsões garantem às comunidades a impossibilidade de perda do território.
Dívida histórica
Ao menos três comunidades quilombolas do Paraná situam-se em áreas devolutas estaduais e já tiveram seus Relatório Técnico de Identificação e Delimitação publicados. O relatório de Varzeão foi publicado em 2016, São João em 2018 e João Surá em 2010. Ou seja, nestas comunidades – para as áreas do território tradicional que se encontram em terras devolutas – já era possível ao menos há vários anos ter o título emitido. A comunidade de João Surá, de RTID publicado há mais de 12 anos, possui metade do território tradicional em terras devolutas. A comunidade teve a Portaria de Reconhecimento – etapa seguinte ao RTID – publicada em 2016 e depois o processo estacionou. Em paralelo a tramitação no Incra e como procedimento previsto na Instrução Normativa, a autarquia remeteu o processo ao estado do Paraná em 2019 para providências de titulação da parcela devoluta do território. Até o momento não teve retorno.
Carla relata que a comunidade enfrenta dificuldades para construção de casas e plantios, pela ausência de espaço para desenvolver suas atividades. Outra preocupação é assegurar a permanência de jovens nos territórios diante da instabilidade gerada pela ausência do título. "A gente precisa que a juventude, principalmente, acesse a terra para poder ter condições para manutenção deste território. Necessitamos que estas terras sejam devolvidas para as comunidades", aponta ela. Ela ainda cita a exposição à risco de despejos e assédio de operação de empresas ao território. "A gente sabe que estas famílias estão lá há mais de 200 anos e estão sendo obrigadas a sair das famílias por conta desse descaso", aponta. Atualmente 56 famílias residem na Comunidade.
"Essa lentidão da titulação das terras quilombolas prejudica no acesso à políticas públicas. Muitas comunidades não têm acesso à agua, a política de construção de casas ou até mesmo financiamento da agricultura familiar pela falta do título da terra. Como comprovar que o produtor tem um lugar para plantar?", questiona.
O estado do Paraná possui apenas uma comunidade quilombola com titulação parcial, dentre os 39 territórios com processos abertos no Incra. A finalização do longo processo de regularização fundiário de Paiol de Telha só foi possível com o acionamento da justiça, por meio de uma Ação Civil Pública (ACP), ajuizada em 2019 pela associação da comunidade. A comunidade ainda luta para titular a totalidade da área a quem tem direito. Nas demais etapas do processo de regularização fundiária, o estado acumula 9 RTIDs publicados e 3 portarias de reconhecimento publicadas. Com isso, 29 comunidades se encontram ainda em estágio inicial do processo, de modo que o número de territórios quilombolas com terras devolutas a serem transferidas pode ser ainda maior.
Consulta às comunidades quilombolas
Para a elaboração do Projeto de Lei os mandatos realizaram diálogos com a Superintendência do Incra no Paraná, organizações de direitos humanos – como a Terra de Direitos – comunidades quilombolas e a Fecoqui. De acordo com o deputado estadual Goura, este processo possibilitou que as comunidades quilombolas, público beneficiário da proposta legislativa, pudessem discutir a redação do PL e apontar mudanças. O parlamentar relatou que estas contribuições foram estão presentes na redação final do PL. "Procuramos seguir a Convenção 169 e trazer este envolvimento na construção da legislação e agora é o trabalho de articulação para sua tramitação e desejada aprovação", diz Goura. A Convenção determina a consulta prévia, livre e informada aos povos e comunidades tradicionais sobre medidas legislativas, administrativas e de mercado que afete os modos de vida.
O parlamentar destaca que a aprovação do Projeto de Lei é uma importante sinalização da Assembleia Legislativa do Paraná na efetivação dos direitos quilombolas. Ele destaca a necessária articulação entre órgãos e entes para avanço desta política. "O avanço de uma proposta legislativa no âmbito estadual e o envolvimento do governo do estado com suas secretarias, em parceria com órgãos federais, é essencial para avanço no reconhecimento e garantia de direitos. E a garantia do território do direito é essencial para a garantia de demais direitos, como cultura, preservação dos saberes tradicionais", complementa.
"Nós, da Fecoqui, temos uma expectativa positiva em relação ao PL porque isso irá ajudar a avançar no processo de titulação onde há terras devolutas e com isso acelerar processos no estado. Com isso deve ajudar as famílias a manter sua renda e os modos de vidas comunitários no território. Deve permitir a realização de projetos de desenvolvimento econômico, um a das principais demandas das comunidades, a desenvolver nossa região. Com isso não será preciso sair daqui para procurar emprego em outros lugares onde a crise já não permite que a gente tenha acesso aos empregos. O território tem um grande potencial para desenvolver cadeias produtivas, tanto para o mercado regional quanto de capitais", defende Carla.
Fonte: Terra de Direitos