| | | O filme A substância é uma descarga de estímulo sensorial que dura 141 minutos ininterruptos. A diretora francesa Coralie Fargeat, no segundo longa-metragem de sua carreira, agarrou o gênero body horror pelos cabelos e abusou de todas as suas premissas para transformar um conhecido conto feminista num espetáculo visual. No filme, Elisabeth Sparkle (Demi Moore) é uma estrela decadente de Hollywood que se mantém na tevê dando aulas de aeróbica. Aos 50 e tantos anos, ela é demitida por ser considerada velha demais. Quem toma a decisão, claro, é um homem de 50 e tantos anos que argumenta estar buscando o frescor da novidade: uma substituta que tenha, no máximo, 30 anos. Escanteada dos holofotes, a atriz decide participar de um experimento pseudocientífico macabro que estimula seu corpo a produzir uma nova versão de si mesma. Sue (Margaret Qualley) nasce das próprias entranhas de Elisabeth: jovem, radiante e ainda mais bonita do que esta jamais foi. Há apenas uma regra: as duas versões precisam trocar de lugar a cada sete dias. Uma só existe enquanto a outra está adormecida. Encantada pelos paparicos da juventude, Sue se rebela e começa a trapacear, drenando a vida do seu Eu original. Essa dinâmica rapidamente ganha contornos de thriller, uma guerra persecutória travada entre essas duas mulheres que se odeiam, ainda que sejam a mesma pessoa. A metáfora, aqui, é a daquela voz presente na cabeça de todas as mulheres que se odeiam (e se odeiam porque a sociedade ensina que elas têm que se odiar, especialmente a partir de certa idade). Essa voz existe apenas para sabotar e anular a vida das mulheres, educadas para serem inseguras. Mas Coralie Fargeat não quer saber de metáforas e leva a história ao extremo da literalidade, sem poupar o espectador de nenhum detalhe grotesco dessa autodestruição. Nesse body horror feminista, ela filma cada parte do corpo das personagens com obsessão, evocando uma miríade de sensações, do desejo à repulsa. A maneira como escolhe filmar o corpo de Sue, por exemplo, produz um incômodo particularmente irritante, porque escancara a forma distorcida como se olha para os corpos das mulheres – como se fossem pedaços de carne isolados, desprovidos de humanidade. No quesito visual, porém, é a progressiva degradação corporal de Elisabeth Sparkle que provoca as sensações mais intensas.
Os vinte minutos finais são puro gore, um absurdo visual à David Cronenberg. É o final catártico que, num primeiro momento, pode parecer absurdo demais – mas que depois não parece tão absurdo assim, levando em conta quão bizarra é a experiência das mulheres numa sociedade patriarcal. No limite, a escolha desse final é um grito desesperado. E jorra sangue na cara de todo mundo. | | O gênero da retórica conhecido como diatribe – um discurso crítico de teor demolidor e intensidade elevada – é reabilitado e atualizado nesse mais recente livro de Ariana Harwicz. A escritora argentina radicada na França é autora de cinco romances, todos publicados no Brasil pela Instante. Suas narrativas tratam de temas controversos, como a rejeição à maternidade e o incesto, e construíram a reputação de Harwicz como uma escritora bem-sucedida e destemida (talvez bem-sucedida justamente porque destemida). Aqui, ela nos apresenta a uma coletânea de aforismos e reflexões breves, todas marcadas por certa belicosidade – defesas da arte num mundo cada vez mais vigiado e policialesco. Originalmente construído a partir de um convite de seus editores argentinos, o livro aproveita uma coleção de tuítes de Harwicz como ponto de partida. A estranheza do tratamento dado ao livro no original – agregando tuítes expandidos a breves ensaios, uma lista de dicas culturais, e fotos de páginas rabiscadas e sublinhadas – foi em alguma medida preservada na sua adaptação brasileira. A versão da Instante inclui também uma seção ausente da edição argentina, com uma correspondência entre Harwicz e Adan Kovacsics, o tradutor do escritor húngaro Imre Kertész ao espanhol. Na cuidadosa tradução brasileira, o tom típico da observação intempestiva, eventualmente tosca e brutal, muito característico de tuítes, é mantido. Mais que em todo o restante do livro, é nesse primeiro trecho, intitulado "A escrita doutrinada", que Harwicz afia as facas, e as lança contra o que sente como platitudes confortáveis do senso comum contemporâneo. César Aira disse numa entrevista da década de 1980 que "nunca usaria a literatura para passar por uma boa pessoa", e Harwicz certamente segue seu exemplo. Um dos principais argumentos da autora é que "esta época lê mal porque lê a partir da identidade". Harwicz critica conexões essencialistas entre a identidade e a escrita, e faz um pleito pela complexidade, pela ambivalência. O livro antagoniza, e convida ao antagonismo. "Escrever um romance é a coisa mais próxima de ser advogado do diabo. Advogado do acusado e do inocente ao mesmo tempo. Escrever é um exercício de paranoia extrema em que é preciso enxergar os inimigos de todos os lados e os assassinos disfarçados." Muito mais que um exercício caprichoso, Harwicz quer defender sua própria poética e ética. Na parte final do livro, o tom curto e grosso dos tuítes da parte inicial dá lugar a uma elaboração mais alentada, em miniensaios que tratam tanto do racismo e da xenofobia que experimenta no vilarejo francês onde vive há anos quanto de Glenn Gould, Marguerite Duras, Imre Kertész e Joseph Ponthus. São convites para entender essa arte do idiossincrático cuja música ela começou a escutar em meio ao silêncio da biblioteca da Universidade de Buenos Aires. O livro é sobretudo um manifesto contra a profissionalização do escritor que atende à lógica das redes sociais, ainda que o próprio livro parta de pronunciamentos da autora em uma dessas redes. Tudo bem: "A melhor coisa que poderia acontecer a um artista é assumir suas contradições, sua dupla face, sua dupla moral.[...] Se este livro tem algum sentido, é o de afirmar a necessidade do paradoxo." | | "Nunca, em nenhuma imagem de guerra, se viu os algozes celebrando seus crimes." A frase é de Rodney Dixon, especialista em direito internacional e um dos entrevistados de Investigating War Crimes in Gaza (Investigando Crimes de Guerra em Gaza), documentário recente do jornalista Richard Sanders. Lançado em outubro e produzido em conjunto com o canal Al Jazeera, a rede de notícias do Catar, é um dos mais brutais relatos visuais de atrocidades de guerra a que o mundo já teve acesso. À diferença das imagens captadas nas trincheiras da Primeira Guerra Mundial, ou de milhares de judeus enfileirados e despachados em vagões de trens ou vivendo em campos de concentração durante a Segunda Guerra, as imagens aterrorizantes veiculadas por Sanders foram feitas pelos próprios algozes: soldados das Forças de Defesa de Israel, a IDF. Durante meses, a unidade de jornalismo investigativo da Al Jazeera coletou, na internet, 2500 imagens postadas pelos soldados, que colocaram o nome e a divisão do exército a que pertenciam nos registros. Os partícipes da barbárie fizeram questão de filmar, fotografar, comemorar, e postar todos os seus atos: explosões de cidades e vilas transformadas em escombros; prisioneiros torturados, arrastados, e humilhados; filas de crianças, adultos, velhos e jovens, feridos ou com dificuldade de locomoção, todos (inclusive os pequeninos) com as mãos para o alto, sob as ordens e armas do IDF, seguindo em procissão para campos de refugiados apontados como seguros, mas que depois seriam bombardeados pelas Forças Israelenses. Os soldados se expõem gargalhando enquanto assistem seus escudos humanos nus e ensanguentados entrando nos prédios que eles tentam invadir; se cumprimentam depois de explodirem escolas, hospitais, universidades e mesquitas. Em outras cenas, praticam tiro ao alvo em jornalistas, médicos, paramédicos, crianças, mulheres, funcionários de agências humanitárias. Uma cena particularmente perturbadora mostra o estupro coletivo de um preso. As cenas são acompanhadas dos comentários de especialistas militares, de direitos humanos e de juristas internacionais que explicam por que, por trás de cada cena, há um crime de guerra. Trata-se de uma contribuição inédita do Exército de Israel para estudos históricos, além de também, segundo Dixon, servir como prova de crime de guerra no Tribunal Penal Internacional. Sanders intercala essas cenas a declarações de líderes mundiais, como o presidente americano, Joe Biden, e o ex-primeiro-ministro britânico Rishi Sunak, que, mesmo após esses horrores, afirmam que "não deixarão Israel sozinho", como se os massacrados fossem os israelenses e não a população de Gaza. Há também declarações de Yoav Gallant, ministro da Defesa de Israel, que chama os palestinos de animais, afirmando que seriam tolhidos de água, luz e comida, bem como as afirmações de Benjamin Netanyahu de que acabaria com a Faixa de Gaza, depois dos ataques do Hamas a Israel em 7 de outubro do ano passado. Mas o maior choque do documentário, talvez, seja ver o apoio de boa parte da população israelense ao genocídio. Embora Israel tenha proibido a imprensa local e internacional de entrar em Gaza para registrar a guerra, o público é informado, em tempo real, sobre o que está acontecendo no território vizinho, através das postagens dos soldados em suas redes sociais. Para parte da população, a dor dos palestinos não é motivo de revolta e, sim, de contentamento. Nas boates da capital israelense, a música mais tocada pelos DJs é May your village burn ("Que sua vila queime")", acompanhada pelo público que canta e dança animadamente.
O filme de Sanders provavelmente não ganhará o Oscar de melhor documentário, como o ucraniano 20 dias em Mariupol, laureado em 2023, sobre o cerco russo àquela cidade (Hollywood não é simpático à causa palestina). Mas é um dos maiores registros sobre a maldade humana. Há um aforismo atribuído a Hannah Arendt, uma das mais celebradas intelectuais judias, que, depois dos massacres da Segunda Guerra, teria dito: "A morte da empatia humana é um dos primeiros e mais reveladores sinais de uma cultura a ponto de cair na barbárie." O documentário está disponível no YouTube, com legendas em português. | | | | Inspirado pela obra do autor francês Édouard Louis – cujos livros recontam sua difícil trajetória como um menino gay criado numa família pobre do interior da França – , o repórter Thallys Braga publica, na edição de outubro da piauí, um tocante relato sobre sua própria experiência. Nascido e criado no bairro de Inhoaíba, em Campo Grande, no Rio de Janeiro, filho de um pai que morreu cedo por causa do vício em drogas e de uma mãe que passou a vida em trabalhos precários, Braga também sempre soube desde cedo que era gay. Como Louis, enxergou na aspiração intelectual uma forma de evadir a homofobia do seu meio. A travessia a outra classe social, porém, também tem seus percalços e suas próprias formas de violência. Ora analisando a obra, ora traçando paralelismos com a vida de Louis, Braga encontra nos escritos autobiográficos do autor francês uma chave para tentar decifrar sua própria identidade e sua própria trajetória.
Fotografia_Acervo_Pessoal_Thallys_Braga
| | | | | |
Nenhum comentário:
Postar um comentário