Pelas graves violações de direitos humanos sofridas pelo povo indígena Avá-Guarani durante a construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu no lado brasileiro.
Representado pela União, pela Fundação Nacional dos Povos Indígenas (Funai) e pelo Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), o Estado Brasileiro e a Itaipu Binacional (margem esquerda) reconhecem publicamente e pedem desculpas ao povo Avá-Guarani, do oeste do Paraná, pelos danos e violações de direitos humanos ocorridos durante a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu nas décadas de 1970 e 1980.
O presente pedido resulta de acordo firmado pelas partes perante a Câmara de Mediação e Conciliação da Administração Pública Federal (CCAF/CGU/AGU) e homologado judicialmente na Ação Cível Originária (ACO) nº 3.555, que tramita no Supremo Tribunal Federal (STF), ajuizada por iniciativa do Ministério Público Federal (MPF) e das Comunidades Avá-Guarani, com o objetivo de promover a reparação às comunidades indígenas Avá-Guarani do oeste do Paraná, tendo como um de seus requerimentos que "seguindo as recomendações da Comissão Nacional da Verdade", o Estado brasileiro, realize "Pedido público de desculpas do Estado brasileiro aos povos indígenas pelo esbulho das terras indígenas e pelas demais graves violações de direitos humanos ocorridas sob sua responsabilidade direta ou indireta no período investigado, visando a instauração de um marco inicial de um processo reparatório amplo e de caráter coletivo a esses povos.' [...]".
Os Avá-Guarani que hoje vivem na região são falantes do tronco linguístico tupi-guarani, que ocupavam no século XV vasto espaço correspondente às atuais regiões Sul, Sudeste e Centro- Oeste do território brasileiro. São sobreviventes de um longo processo de expropriação de suas terras e direitos, desde a colonização de seu território de
ocupação tradicional até a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu.
Histórico de violações
Entre o final do século XIX e início do século XX, as populações Guarani sobreviventes deste longo histórico de escravização foram empregadas no oeste paranaense na
produção de erva- mate e derrubada de madeira. Eles viviam em regime de trabalho análogo à escravidão, ou de escravidão por dívidas, em vastas áreas concedidas pelo
Governo Imperial e, posteriormente, pelo Governo Republicano para companhias privadas.
Com o declínio da atividade ervateira a partir da década de 1930, teve início um novo padrão de exploração e ocupação do território. Iniciada em 1938, a chamada marcha
para o oeste causou a chegada massiva de colonos ao oeste do Paraná. As terras indígenas foram alvo dessa onda neocolonial e passaram a ser tituladas a não indígenas,
por meio de iniciativas estatais dos governos federal e estadual, que partiam da premissa de existência de vazio demográfico.
Portanto, a região oeste do Paraná estaria despovoada, cabendo ao Estado ocupá-la como estratégia de desenvolvimento. Contudo, esse pressuposto ignorava a existência
dos povos originários que viviam há séculos no território, possibilitando a violação de seus direitos. A invisibilização nas narrativas oficiais e no imaginário social foi
acompanhada do apagamento violento de sua existência concreta.
Mesmo existindo leis, desde a Constituição de 1934, que protegiam as terras ocupadas pelos povos originários, bem como o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) e sua sucessora, a Fundação Nacional do Índio (Funai) negligenciaram a existência dos Avá-Guarani do oeste do Paraná até os anos 1970, não demarcando suas terras. Era comum na época, nas várias esferas governamentais e na sociedade regional, a concepção de que os indígenas deveriam estar confinados em reservas.
Tanto o SPI quanto, posteriormente, a Funai pressionaram os Avá-Guarani a deixarem suas terras e a migrarem para reservas indígenas, localizadas a centenas de
quilômetros de onde moravam, em muitos casos, para reservas já destinadas a outros povos indígenas. Desse modo, articulada com outras instâncias do Estado a nível
nacional e regional, a ação dos órgãos indigenistas contribuiu para o desterro dos indígenas ao negar-lhes o reconhecimento pleno de seus territórios tradicionais. Isto
promoveu o seu confinamento em áreas reservadas, com o propósito de disponibilizar terras à colonização, não bastando que a retirada dos indígenas de suas terras fosse
proibida pelas leis da época.
Nem mesmo áreas antigas, reconhecidas pela sociedade regional e por agentes do Estado como de ocupação indígena, foram poupadas da espoliação. Casos como o da
Colônia Guarani, situada em Foz do Iguaçu, e da área conhecida como Jakutinga - também chamada Ocoy, Jacutinga ou Barra do Ocoí - comprovam essa situação. Ainda
que não tenham sido ofcialmente demarcadas, embora existam documentos da época que demonstram a intenção do órgão indigenista em demarcá-las, essas terras
mantinham condições ambientais consideradas adequadas pelos Guarani para o desenvolvimento de seu modo de vida.
Eram consideradas por eles áreas mais seguras das pressões externas, servindo de refúgio para as famílias Guarani que saíam de outras localidades, em
razão das diversas formas de violência sofridas. Em 1976, o Incra, em conjunto com a Funai, destinou as terras da Colônia Guarani para o assentamento de colonos, o que
resultou na expulsão das comunidades indígenas.
Construção da Hidrelétrica de Itaipu
Após esse processo contínuo de esbulho das terras indígenas, nos anos 1970, os Avá-Guarani foram confinados nas margens do rio Paraná e logo foram impactadas com a
construção da Hidrelétrica de Itaipu.
Iniciadas em 1966 para o aproveitamento do potencial energético do rio Paraná, as negociações diplomáticas entre Brasil e Paraguai culminaram, no ano de 1973, na
celebração de um acordo entre os dois países. O acordo previa o represamento do rio e a construção de uma grande usina hidrelétrica, conforme Decreto nº 72.707, de 28
de agosto de 1973.
No início dos anos 1970, o governo já implementava medidas para deslocar as populações que seriam atingidas pelo represamento do rio, incluindo os Avá-Guarani, aos
quais foram negados indenização e reassentamento, pois tais medidas tiveram como pressuposto a existência de "título regular". Evidentemente, os indígenas não possuíam
títulos de suas terras e nem território demarcado pelos órgãos indigenistas, sendo apartados das políticas compensatórias e indenizatórias. Ademais, seus últimos refúgios
foram utilizados para reassentamento de não indígenas.
Mencionada anteriormente, a Barra do Ocoí foi drasticamente reduzida pelo Incra para a implementação do Projeto Integrado de Colonização Ocoí (PIC-Ocoí), que visava
reassentar posseiros que se encontravam instalados no Parque Nacional do Iguaçu, nas áreas de inundação do reservatório de Itaipu. A Funai corroborou com esse processo
ao negar a identidade de famílias indígenas que permaneciam no local. Isso os confinou a uma estreita aixa de terra à beira do rio, a Reserva do Ocoí, que se tornou área de
proteção permanente com a formação da barragem de Itaipu.
Diante da iminente inundação de várias áreas onde a população Avá-Guarani havia se refugiado, nas margens do Rio Paraná, a Funai estimulou a mudança dos indígenas
para reservas Kaingang e outras áreas indígenas no interior do Paraná. Os Avá-Guarani relatam que o exílio em terras de outros povos e a forma autoritária como a Funai
administrava estes espaços foi fonte de sofrimento para esse povo.
No processo de desocupação do perímetro que seria alagado pelo enchimento da barragem de Itaipu, equipes do INCRA pressionaram os indígenas para que fossem
embora de suas terras. Deste modo, os Avá-Guarani foram expulsos das últimas terras que ocupavam, como a Okoy Jakutinga e outras pequenas áreas espalhadas pelas
margens do Rio Paraná. Posteriormente, a maior parte das terras ocupadas pelos Avá-Guarani oram definitivamente inundadas com o enchimento da barragem de Itaipu.
O alagamento das margens do rio Paraná atingiu as matas habitadas pelos Avá-Guarani e deixou totalmente submersa a maior cachoeira em volume de águas do mundo, a
Sete Quedas. O local é sagrado para os Guarani e permitia aos pajés do povo uma conexão com outros patamares habitados por suas divindades. Também o local da Usina
destruiu Itaipyte, outro sítio sagrado para os Avá-Guarani, onde os pajés conheciam os caminhos para Yvy Marã'e'y, ou Terra Imperecível.
O indígena Lourenço Figueiredo relata como foi vivenciar o deslocamento forçado:
"Aqui mesmo, em Dois Irmãos, tinha 70 famílias indígenas. Eu sou daqui de Santa Helena Velha, eu nasci, criei com os indígenas e tudo. Eu era cacique
também. Depois veio Itaipu e mandou tudo embora. Não pagou nada, deixou só. A Itaipu chegou e só falou que ia vir a água e que 'pode se mandar'. E o que
nós ia azer? Ficamos triste. Saímos tudo pelo rio Paraná, por outro lado, por Paraguai. Cada um oi pra um lado. Eu fiquei aqui. Itaipu voltou e alou: 'vão
embora tudo, a água vem vindo'. O que nós ia fazer? Itaipu disse "pode sair tudo'. Eu tinha 4 filhos, não podia sair, fui a Santa Helena. Sorte que encontrei
o Prates, que era prefeito. Ele me arrumou serviço. Depois mandou tudo embora, não pagou nada nossa terra." (Entrevista concedida por FIGUEIREDO,
Lourenço, em junho de 2013. CTI, 2013, p.76.).
Desculpas aos Avá-Guarani
Poucos percebem que o genocídio dos povos indígenas segue se repetindo e que a construção de uma nação democrática depende de uma
justiça de transição ampla para com os povos originários dessa terra, alvos da opressão primeira, que deu origem a essa nação. Enquanto não houver esse
reconhecimento, a violação histórica é continuada" (Sonia Guajajara, 2014, Discurso no julgamento do caso Aikewara-suruí, na Comissão da Anistia).
Como se nota, foram empregadas à época medidas que desconsideraram os direitos, as tradições e os laços espirituais e culturais que os Avá-Guarani mantêm com suas
terras ancestrais por força da colonização agrícola do território a partir do início do século XX e depois para a geração de energia elétrica, com a construção de Itaipu.
Diante desses fatos, por meio do presente ato, o ESTADO BRASILEIRO, representado pela União, FUNAI, INCRA e ITAIPU BINACIONAL(margem esquerda), reconhecem
os impactos ocasionados às comunidades indígenas Avá-Guarani do oeste do Paraná antes e durante o processo de idealização e construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu
e expressam publicamente tudo que foi suportado pelas comunidades indígenas, submetidas a deslocamentos, perda de territórios sagrados e impactos em suas formas de
vida e expressões culturais ao longo de todo esse período.
Reconhecem, portanto, que a formação do reservatório e a subsequente expropriação de territórios contribuíram para desestruturar suas formas de vida e subsistência,
ocasionando significativos impactos sociais, econômicos e culturais.
Por este ato, o Estado Brasileiro e Itaipu Binacional (margem esquerda) reconhecem suas responsabilidades e se desculpam publicamente pelas violações de direitos
humanos cometidas contra o povo Avá-Guarani no processo de construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu, divulgando esses fatos à sociedade no intuito de honrar a
memória das vítimas que tiveram sua dignidade, identidade cultural e existência sistematicamente negadas e, em última instância, tiveram suas vidas destruídas.
Por fim, se comprometem a efetuar medidas concretas de reparação e preservação da memória histórica dos acontecimentos, como mecanismo de não repetição,
fortalecendo o Estado Democrático de Direito no país.
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